Fonotecas em Rede

 

 

O Disco, a Roda, a Rede. é tempo de falar de acervos e acessos

Encontros internacionais promovem debates sobre preservação e difusão de acervos de discos em 78 rpm

 

Viva! A partir de agora, Julho de 2016 fica registrado como o mês em que acervos de discos, fonotecas, rádios, músicos, colecionadores e pesquisadores de várias partes do planeta finalmente se conectaram, em dois grandes encontros para trocar conhecimentos e desafios sobre a conservação, digitalização e difusão de preciosos acervos de 78 rpm, objetos sonoros cheios de histórias.  Depois de flutuar pelo Congresso Música e Lusofonia em Acervos de 78RPM, em Aveiro, Portugal e pelo I Encontro Internacional de Discotecas em São Paulo, já confio e anuncio o nascimento de uma grande e diversificada rede de amigos dos nossos discos em Goma-Laca.

Entre os dias 7 e 9, a Universidade de Aveiro, em  Portugal, promoveu o Congresso “Música e Lusofonia em acervos de  78 rpm”. Idealizado pela etnomusicóloga portuguesa Susana Sardo e o pesquisador brasileiro Pedro Aragão, o evento reuniu gente do Brasil, Portugal, Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe. A grande roda girou em torno do imenso acervo do radialista e produtor José Moças, diretor da Tradison, que acaba de ser doado para pesquisas na Universidade. Ao receber os mais de 6.000 discos de 78 rpm da coleção de Moças, a Universidade de Aveiro encontrou vários desafios e questões sobre conservação, digitalização e acesso. O melhor caminho para resolver essas questões foi reunir pessoas e instituições que passaram ou passam por problemas parecidos. O intercâmbio começou com as consultorias em digitalização dadas pelo mestre das engenhocas da digitalização Otacílio de Azevedo Neto, filho do pesquisador e colecionador Miguel Nirez. Em sua estadia em Aveiro, o cearense construiu uma máquina de lavar discos com escova de dente e bombinha de aquário, ensinou a ressuscitar disco quebrando com cera de vela, e para finalizar com brilho, encontrou discos brasileiros inéditos no acervo português.

Em Portugal, especialista em discos de 78 rpm descobre gravações brasileiras inéditas

Silenciosos e Silenciados – nas palavras da pesquisadora portuguesa Leonor Losa, autora do livro “Macchinas Fallantes – A música gravada em Portugal no ínicio do Séc XX”, os antigos discos que giravam por volta das 78 rotações por minuto, nos apresentam o passado como um país estrangeiro. Produzidos com uma mistura de goma-laca, baquelite, cera de carnaúba, ou outras infinitas misturas possíveis, esses “discos de pedra” fabricados a partir de 1900 até o final dos anos 70, são especialmente frágeis e difíceis de reproduzir. Reveladora foi a pesquisa da portuguesa Susana Belchior, da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova Lisboa que mergulhou química-geológica-e-profundamente neste infinito universo da composição dos discos, seus sulcos e cacos no estudo “Imaterial no Material”. Quebram só de piscar, e para escuta-los é preciso ter um equipamento todo especial. Para tornar a coisa ainda mais exclusiva, as matrizes originais destes discos não existem mais. Se não fossem os colecionadores e acervos públicos a conservar os discos em Goma-Laca espalhados pelo mundo, toda  essa memória não poderia se escutada. Neste sentido é preciso urgentemente olhar não apenas para as chapas que sobreviveram a esse século, como também para as pessoas que contribuíram para sua conservação. E aí, coloco em primeiro lugar os colecionadores-pesquisadores, gente como o português José Moças, ou os brasileiros Miguel Nirez, Assis Angelo, Flávio Silva, Gilberto Gonçalves, Leon Barg (em memória) e outros tantos que tivemos a oportunidade de conhecer e trocar saberes centrípetos neste Julho.

Com a mala cheia de ideias e pensamentos em 78 rpm, pousei no Brasil no dia 19 de julho para a abertura do I Encontro Internacional de Discotecas, no Centro Cultural São Paulo. Desta vez, a grande roda circulava a Discoteca Oneyda Alvarega, comemorando os 80 anos de sua criação por Mário de Andrade em 1935. Na programação do evento idealizado pela pesquisadora Flávia Toni, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) e Jéssica Barreto, coordenadora da Discoteca, estavam Anthony Seeger, do Smithsonian Folkways Recordings, George Boziwick, da divisão de música da Biblioteca Pública de Nova York, Juan José da Discoteca Nacional do Uruguai e Museu da Palavra de SODRE, Pascal Cordereix, da Biblioteca Nacional da França, Emma Dederik, do Latin American Music Center, na Universidade de Indiana, e Francisco Javier Rivas, da inspiradora e revolucionária Fonoteca Nacional do México. Projeto dos sonhos, a fonoteca do México tem ousadias apetitosas, principalmente no campo da difusão e formação de ouvidos ouvintes. A começar pelo nome, a Fonoteca do México expande os horizontes para além do disco físico, ampliando a discussão para as órbitas das paisagens sonoras, arquivo de vozes e radio arte.  Só para dar um gostinho, a Fonoteca tem uma estação de rádio, podcasts semanais, transmite eventos e palestras em torno do acervo, pesquisa sons em extinção, promove caminhadas e pedaladas para sensibilização sonora e desenvolveu um mapa sonoro colaborativo do México. Para fechar, já formou a sua Rede Nacional de Fonotecas do país.

Em termos de Brasil, estávamos com o creme: Miguel Nirez,  Biblioteca NacionalInstituto Moreira Salles (IMS), Museu da Imagem do Som – MIS RJFunarteBiblioteca Alberto Nepomuceno (UFRJ), Instituto Cultural Cravo AlbinInstituto Memória Brasil (Assis Ângelo), Discoteca da Rádio Gazeta. Ao final de sua apresentação, Bia Paes Leme, responsável pelo acervo do IMS, lançou a novidade animadora: em 2017 será lançado um portal dedicado à discografia brasileira em 78 rotações, reunindo importantes acervos públicos e privados, colecionadores e pesquisadores de todo o país. A começar pela parceria com o gigante acervo do Nirez, a novidade vai disponibilizar audios, rótulos e imagens em um só banco de dados.  No cafezinho, a conversa fluia no mesmo alto nível, com músicos, pesquisadores e colecionadores conspirando em 78 rpm. Só para dar uma ideia, cito o Rodrigo Caçapa, que está preparando o projeto de pesquisa e criação “O Coco-Rojão e as violas eletrodinâmicas” a partir de pensamentos e registros etnográficos dos nossos pilares Mário de Andrade e Luiz Heitor Corrêa de Azevedo; a pesquisadora colombiana Juliana Perez Gonzalez, que investiga cateretês em discos de 78 rotações em seu doutorado na USP, Laís Barg, filha do fundamental Leon Barg, criador do selo Revivendo, ou a feiticeira dos sons Janete El Haouli, da TOCA – arte, ação, criação, em Londrina, sempre expandindo o universo sonoro para o mundo além música, das paisagens, sotaques, ruídos e silêncios.

De volta para casa, organizando os pensamentos, poderia listar zilhões de ideias e problemas que foram assunto durante os dois encontros. Começando pelos problemas, ainda penso que o principal é o acesso. Na abertura do evento no Centro Cultural São Paulo, ao anunciar nossos maiores desafios, Anthony Seeger exibiu a imagem de um homenzinho lutando com um enorme dragão. O duelo poderia ser do pesquisador com o arquivista. Mas também poderia ser do arquivista com os compositores, ou administradores. Enfim, por mais bem cuidados, catalogados, digitalizados que os registros sonoros possam estar, um disco na gaveta não serve para nada. È preciso pensar mais em como disponibilizar (e usar!) estes tesouros guardados por dragões, inventar novas políticas de direitos autorais, criar uma plataforma geral de dados e acervos, padronizar as formas de catalogação. Animadora foi a proposta da Maristela Rangel, do centro de documentação da Funarte de se criar um Plano Nacional de Digitalização de Acervos, ou até Fundo de acervos. É tempo de unir forças e fazer circular! Em Portugal, Joséphine Simonnot, do Centro de Pesquisa em Etnomusicologia da Universidade de Paris, apontou um caminho luminoso com a plataforma aberta Telemeta, que poderia ser um primeiro passo para a criação desta bem vinda rede de acervos de 78 rpm.  Pensando em memórias sonoras que foram brutalmente apagadas por desastres ambientais, guerras, ou emissoras de rádio que se desfizeram dos discos para combater os ácaros, pensando na obsolescência de equipamentos e nos profissionais heróis que mantiveram esses sons até os nossos tempos, Seeger compôs um hino em homenagem à Discoteca Oneyda Alvarenga e seus 80 anos de resistência que terminava assim: “For eithy years this archive collected thousands and thousands of records. Many people worked hard at processing, so we can happily sing – not lost forever, we have those images and sounds, Many people can use then, for the discoteca housed them, na so we will have them for good!”.

A rede está formada. Agora é manter a roda a girar.

(Por Biancamaria Binazzi, originalmente para Goma-Laca)

Brindes:

1) Na abertura do Encontro Internacional de Discotecas, Anthony Seeger compõe hino para a Discoteca Oneyda Alvarenga, e fala sobre origens e destinos dos acervos sonoros:

 

2) Na Universidade de Aveiro, Pedro Aragão, Otacílio Azevedo e José Moças descobrem discos brasileiros inéditos (ver a partir de 21:45m).

 

3) Bia Paes Leme, responsável pelo acervo de música do Instituto Moreira Salles, apresenta o que temos de melhor aqui no Brasil em termos de acesso e anuncia mudanças animadoras: em 2017, está para nascer um grande banco de dados, reunindo os mais importantes acervos do país (ver a partir de 08:41m).

 

4) Em 1950, Heitor Villa-Lobos devaneia sobre a alma da música brasileira. O arquivo integra a coleção “Benin e Brasil”, gravada por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, hoje disponível no portal do Centro de Pesquisa em etnomusicologia de Paris (CREM), pela plataforma aberta teletema, apresentada em Aveiro pela  Joséphine Simonnot.

 

5) Na Roda de colecionadores que encerrou o evento no CCSP, Gilberto Gonçalves compartilha uma raridade. Lançado em 1916, “Joaquina” é uma das provas de que “Pelo Telefone” definitivamente não é o primeiro disco registrado como Samba!

JOAQUINA – Coleção Gilberto Gonçalves