19 mar Cabelos Brancos – Lado A
Tardinha morna, ele esperava na saída da estação e eu saía sem esperar ninguém.
No tempo rolante, “atenção, pais, segurem suas crianças” – e “’ai” de quem pisar na linha amarela!. No alto, o taxista a postos, a visitante desorientada, o vendedor de balas e o rádio que toca notícias. Pedro Brás estava esperando. E eu só passava.
O velho Brás esperou eu passar bem na sua frente para entoar num doce e bom tom uma canção antiga.
”Minha vida, era um palco iluminado, e eu vivia vestido de dourado, palhaço das antigas ilusões!”. Sim, era o Chão de estrelas, e aquilo poderia ser para mim. Pisava nos astros distraída? Logo eu? Observada em uma tardinha morna. Muita arrogância pensar que era para mim. Tanta gente passava por ali. Eu passava, e Pedro esperava, Brás…
Segui a pé, pensando no chão de estrelas pintado na estação. Tentando lembrar a letra da musica, Minha vida, ou sua vida era um palco iluminado? Nelson Gonçalves canta, Vicente Celestino e Silvio Caldas também. Chão de estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, mil novecentos e trinta e sete! Segui cantarolando em pensamento apenas a parte da musica que lembrava. E devagarinho era estrela. Em cima do palco, no meio do trânsito, no alto da tarde. Distraída. Eu passava.
O meu ouvido, absoluto, ouvia Nelson Gonçalves. Mas só um pedaço.
Segui, e cheguei. Desci do palco, desliguei o radio.
*
Longe daqui, vivia Pedro Brás.
Pedro Brás morava ao lado, bem perto daqui perto. A nossa distância era o tempo. Ele era vizinho, e nós dividíamos o mesmo tempo, Novembro de 2007. Mas ele cantava antigas canções, de um tempo que era dele, que não era meu.
O que ele esperava no metrô? Ele pensava no trem, noutros tempos. De terno branco engomado, cabelo bem arrumado e calçado novo. Pedro apanharia o trem para ir ao correio. Estava enamorado e tinha escrito uma carta. Como Pedro Brás quis saber escrever canções, entoar serestas ao luar… Ele trabalhou nos Correios por muitos anos. Conhecia muita gente e gostava de ficar com as cartas que não tinham destino bem definido. Depois, apanhou o trem e voltou para casa. Num tempo que não é meu, Pedro Brás ouvia o radio e pensava em Dora.
***
Queria Ouvir Pedro Brás só mais uma vez. Para lembrar o final da musica.
Noutro dia, enquanto subia as escadas do mesmo metrô, pensei que Pedro Brás poderia estar lá. Ele cantaria mais uma vez. E eu seguiria pelas ruas, estrela, como da outra vez.
Ele não estava. Eu esperava. O que eu estava pensando de Pedro Brás? Que ele não fazia mais nada? Só esperava, assoviando por aí? Esquecemos que Pedro Brás foi um funcionário modelo nos Correios, que amava Dora, e precisava comprar mais agulhas para a vitrola. Onde estaria Dora? O que fizeram com a minha Dorinha?
Pedro Brás passava. Enquanto eu ainda o esperava.
Ele segurava uma sacolinha de plástico com algo parecido com um envelope. Deviam ser as agulhas! Brás deve ter muitos discos. Limpos e bem conservados. Em casa, escolhe apenas um por vez. Limpa. Olha bem a capa enquanto ouve. Depois guarda.
Ali! Ele não vai parar? Ei, espera, canta mais uma!
Ele passou entretido com sua sacolinha de agulhas. Sintonizei meu ouvido em um antigo samba, que o Brás deveria conhecer, e segui seguindo. Sei que é doloroso um palhaço…se afastar do palco por alguém! Volta, que a platéia te reclama, sei que choras palhaço por alguém que não te ama!”
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Não, Nelson Cavaquinho não combina com o Pedro Brás. O homem do metrô é seresteiro, vai de Francisco Alves e Orlando Silva. Mania que a gente tem de juntar o passado num tempo só.
O Sr. Brás não tem dores no cotovelo. Ele ama Dora. E ela, adora! O Sr. Brás gosta de serenatas, valsas bem valsadas e aquele aperto de mão. Queria seu Brás e mais uma canção. Eu esperei, e ele passou.
Por que ele não gostaria dos sambas do Nelson Cavaquinho? Precisava ter certeza. Algo me dizia que ele conhecia, e muito bem, pelo menos o Palhaço. Dito e feito.
*****
A outra vez que vi Pedro Brás foi na farmácia. Reconheci o seresteiro pelo saquinho plástico. Ele estava no balcão, apontando alguma receita . Posicionei-me atrás dele, mas de costas. E, meio tímida, assoviei baixinho o Palhaço. Ele caiu em minha armadilha! Não se conteve, e em alto e bom tom cantou.”sei que é doloroso um palhaço..” Sem virar para trás, ele cantava e olhava fundo nos olhos do farmacêutico. Como faz bem ouvir alguém cantar com o coração! O farmacêutico agradeceu: Esse é o meu amigo Brás, sempre animado! E a Dona Dora, como está?
Ela estava melhor, mas ainda não havia se recuperado totalmente. Brás estava preocupado, porque ela não queria mais saber de comer. Só tomava um copo de leite com torradas no meio da tarde. No mais, estava tudo certo. O Doutor Marcos disse que os comprimidos são muito fortes e tiram o apetite mesmo. Em uma semana ela já estaria comendo de tudo.
Que sorte a minha, ouvir o Brás na farmácia! E pensar que ele não conhecia Nelson Cavaquinho!!! Agora as portas se abririam. Pedro Brás também cantaria a dor de cotovelo, o samba do morro, cantaria seu primeiro amor, a rosa vermelha e a branca, uma valsa, uma saudade, a escola do malandro. Ele me apresentaria novas melodias, novos velhos causos da cena carioca. Um tipo sabiá cantador! E eu passaria a armazenar cada fragmento de sua memória na minha.
Ele despediu-se do farmacêutico e sumiu. Nem deve ter percebido que, atrás dele tinha alguém que fazia som baixinho, esperando por ele. Eu conheci um homem que cantava antigas canções, e só pensava nisso.
Como era difícil encontrar Brás pelo bairro, passei a procurá-lo nos discos. Buscava em cada álbum a musica que mais combinaria com a sua voz. Também ouvia diferentes gravações de uma mesma composição com o mesmo intérprete. E as cantoras?! Aracy de Almeida, Dalva…. Tinha a impressão de que ele não tinha muitos discos da Carmem Miranda. Ele gostava ouvir e re-ouvir a Isaurinha cantar Linda Flor. Henrique Vogeller, 1948. “Ai ioiô, tenha pena de mim..fui olhar pra você, meus olhinhos fechou…” Ele cantava para a Dora ficar boa. E ela fechava os olhos para ouvir.
Daria tudo para poder ouvir ele cantar. Só mais uma vez…
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Desta vez foi na praça.
Era bem cedo, e já da janela eu ouvia a voz do cantor. “Soltei meu primeiro pombo correio, com a carta para aquela mulher que me abandonou. Soltei o segundo, terceiro, meu pombal terminou. Ela não veio, nem o pombo voltou…”
O pombo correio é parente próximo da serenata. Não tem nada mais lindo que falar de amor via pássaros e canções. A janela aberta, a calçada, um carinho. Saudades da São Paulo das columbas! Ouvir aquelas melodias era ganhar mais tempo. Um tempo que andava para trás. Eu não queria ganhar mais anos de vida, viver até os 120, isso não! Mas seria interresante ganhar alguns anos para trás. Caminhar pela São Paulo dos seresteiros. Tropicar pelos botequins. Escapulir do trem antes do cobrador puxar a cordinha, e coração dando pinote! Ouvir a musica que vem do radio e da janela.
Acompanhar as cantorias do meu ilustre vizinho me dava de presente este passado.
As buscas eram cada vez mais intensas. Discos e mais discos, agulhas e mais agulhas! Agora era eu quem caminhava de saquinho plástico pelo centro da Cidade em busca de agulhas e velhas melodias.
Meu ouvido andava afinadíssimo. Descobri que cantar por aí não é um habito exclusivo de Pedro Brás. Andei reparando que, como eu, todos tem um radio preso no ouvido, e há sempre uma musica tocando lá dentro. É o tipo de musica que fica na cabeça o dia inteiro! E não há o que a faça desaparecer! Até que chega o momento em que a gente não agüenta, e a musica vaza por algum espaço. E, liberamos a criatura, canta-se, batuca-se, assovia-se. Alto, ou baixo. Completa ou incompleta. E aí, a música fica publica, e ninguém sabe em qual ouvido ela pode parar. E por quanto tempo ela é capaz de ficar por lá.
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Deu no Radio:
Fica proibido cantar pelas ruas. Outras ameaças sonoras como assovios e batucadelas em vias públicas, a partir de agora também são atividades proibidíssimas.
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O que Pedro Brás fez com a regra eu não sei. Acredito que continuou ouvindo música em casa, e cantando baixinho para não acordar a Dora.
E de repente, meu radio tocava noticias. Sintonizava normas e projetos para o futuro. São oito horas e vinte minutos. Amanha vai chover. Transito tranqüilo, por enquanto.
De repente, não havia mais musica. Para mim, ela não vinha.
Estava de volta ao meu tempo. Um tempo que era meu, e de Pedro Brás também. Tempo de janela fechada e silêncio zumbindo na rua. Um tempo de pouco carteiro e, sem pombo correio.
Eu olho a rosa na janela, e penso nas canções que poderiam ser para ela.
Em tempos de silêncio, meu radio toca noticia.
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